sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Danação

Queria poder, por um minuto sequer, me livrar dos pensamentos que me atormentam a alma, das idéias que me instigam e da angústia que me toma por completo. Queria me livrar das vozes que ecoam dentro de mim e que por vezes, me tornam sombria.
Por que não consigo me desligar desse mundo por um momento? Por que as vozes não param de assombrar meus dias de agonia? Por que?... Por que?...
As perguntas jorram das entranhas de meus milhares de neurônios e sinto uma vontade inebriante de derramar-me em lágrimas, mas sou forte. Tenho que ser...
Não posso deixar que a tristeza emanada em mim agora, transpareça em minhas atitudes, pois, sou um exemplo a ser seguido, alguém que não deve levar uma vida em vão... De repente, sinto-me impulsionada a revirar minhas antigas coisas. O guarda-roupas encostado canhestramente na parede sem vida do quarto, me convida a explorá-lo, a relembrar um passado há muito esquecido.
Abro suas portas velhas e um cheiro de mofo invade minhas narinas, deixando-me sem equilíbrio. A poeira levantada dos objetos, irrita minhas vias aéreas e um espirro tenta se livrar dos ácaros que invadiram meu bem arquitetado corpo.
Uma caixa de papelão chama-me a atenção e eu, sem perceber estou com ela, sentada no chão imundo, iluminada por uma vela gasta e cercada por sons de pequenas patas no assoalho, movimentando-se incessantes. Era uma casa velha agora e os roedores, adoravam aquele lugar. Há alguns anos, eles não ousariam entrar ali, mas agora, eu era a intrusa. Esperava nunca mais ter que voltar... Tinha prometido a mim mesma que jamais voltaria naquele lugar enquanto morassem lá, mas a ultima notícia que recebi, convenceu-me que minha promessa podia ser esquecida. Eles estavam mortos...
Há dez anos, saí daqui somente com a roupa do corpo, pois estava no meu limite. Não podia suportar ficar nesta cidade interiorina, nesta casa, por mais nenhum momento. Estava apodrecendo aqui, assim como as minhas chances de um futuro promissor. Saí sem dizer adeus, sem esperar que aprovassem e sem nem ao menos pensar em voltar um dia.
Aos poucos, tornei-me conhecida e respeitada por meu trabalho como jornalista, fui à outros países, fiz alguns amigos e apesar de nunca ter me envolvido seriamente com ninguém, estava sempre acompanhada. Nunca mais voltei a olhar nos olhos dos bípedes que me deram vida, nem ao menos para mostrar o ar de triunfo que representava. Não, eu não tinha por que fazer isso... até agora.

-O que? Eu não posso fazer isso!
-Senhorita, somente você pode identificar os corpos, já que é a única filha que têm – dizia uma voz ao telefone, que identificava-se como sendo um policial rodoviário. Uma pessoa que me ligara para avisar-me sobre o acidente automobilístico e incumbir-me dessa tortuosa tarefa.
-Mas, eu não os vejo há muito! Sinceramente, não sou a pessoa mais indicada para esse trabalho.
-Não há o que eu possa fazer. Não cabe a mim julgar problemas familiares, estou fazendo meu trabalho. Quando poderá vir?
-Eu não esperava por isso. Preciso de pelo menos um dia...
-Muito bem, espero a senhorita amanhã – Desligou sem esperar resposta, como se não quisesse ouvir a próxima desculpa que daria, e ele estava certo em pensar assim.

Mal posso me lembrar do que vi naquele instituto. O cheiro de formol ainda está impregnado em mim, assim como a caricatura de meus pais ou o que sobrou deles. Não se pareciam em nada com os heróis de minha infância mas, também não se pareciam com os que eu deixei há anos. Lembravam qualquer coisa, menos seres humanos... Estavam com os rostos tão deformados, que não consegui senti nada além de repulsa, pois aqueles pedaços de carne pálida que via a minha frente, não eram eles. Eram apenas... pedaços...

Saí de lá desolada, sem rumo e quando percebi, estava sentada no chão do meu antigo e entocado quarto, uma caixa de papelão aberta e objetos antigos sobre o colo. As vozes na minha mente por um instante cessaram, mas as lembranças de minha juventude voltaram à tona, num golpe certeiro e pela primeira vez em anos, chorei sem parar. Um choro amargo, que não era de arrependimento, pois costumo me arrepender somente das coisas que não faço, mas era uma leve impressão de nostalgia, de saudade... Seria culpa?
Fotos, cartas de ex-namorados e ex-amigos, um cartão de Natal de minha madrinha, telegramas, alguns cartões de aniversário, o laço do primeiro arranjo de flores que ganhei, um pedaço de madeira em formato de coração, onde as seguintes palavras encontravam-se entalhadas: “Eu te amo” e “dois anos mais felizes”, uma caixa do fortíssimo calmante que eu costumava usar nas minhas épocas de crise – meio comprimido era suficiente para me manter “apagada” durante toda a noite... Eis a minha própria caixa de Pandora... meus dias mais felizes guardados dentro de um quadrilátero disforme e sem vida, enquanto os dias mais tristes armazenaram-se em mim. Por que as coisas boas são esquecidas tão facilmente? E por que essas mesmas trazem tanta dor, quando lembradas?
Fiquei durante muito tempo, olhando paralisada, aqueles objetos que pareciam cada vez mais, ganhar vida em minhas mãos. As lágrimas e as lembranças ainda jorravam sem parar em minha mente insana, só que dessa vez algo mais me atormentava, as vozes. Elas que há anos me perseguem, mas que ultimamente tornaram-se mais freqüentes.
-...“Você é uma pessoa má, e sabe disso, não é?!”...
- ...”Não, não posso ser assim, as pessoas me adoram! ”...
-...”Que falta você faria ao mundo nesse momento?”...
-...”Alguns chorariam muito, outros nem tanto.Mas depois de um tempo, você seria esquecida, por que as pessoas não amam, apenas acostumam-se com a presença umas das outras ”...
-...“não vê o que aconteceu com os bípedes, seus pais? Tanto tempo sem vê-los, fez com que sentisse nada, diante de suas mortes”...
-ISSO NÃO É VERDADE!! Eu... Eu...
Minha respiração tornou-se ofegante e cada vez mais, meus pulmões funcionavam num ritmo freneticamente rápido, o choro baixo de outrora, transformou-se em soluços pesados, incontidos. Seria eu, alguém tão má assim? Só queria que as vozes parassem de me falar o que dizer, pois nesse momento – e não sei como cheguei nesta cena – vinte cápsulas do antidepressivo que há pouco fora encontrado, estavam em minhas mãos trêmulas de pavor.
Podia ouvir o eco de meus próprios pensamentos, enquanto as vozes aumentavam meu tormento. Uma dança macabra misturava o que era real e ilusório. As vozes e os pensamentos pareciam um só. Eu mesma, já não conseguia me reconhecer. Uma segunda personalidade – que eu não sabia que possuía – estava apossando-se de meu corpo e minhas mãos começaram a rumar minha boca cálida Todas as cápsulas foram engolidas quase que ao mesmo tempo, minhas mãos ainda tremiam, dessa vez de estase... As vozes parariam dentro de alguns minutos e nunca mais voltariam... Nunca mais...

3 comentários:

Alexandre Betioli disse...

Nada mal para uma sexta-feira 13 e nada mal para uma fã de Stephen King. Entendo o que este eufemismo representa na vida desta pessoa. Quando Roland segurou a chave, as vozes em sua cabeça cessaram. Espero que ela encontre sua chave a tempo.

Um grande beijo e abraço.

Rafael Flores disse...

Nossa...bom demais... pela forma como escreve, certamente vc é leitora frequente de ótimos livros!!

rflores87.wordpress.com

Luigi Ricciardi disse...

Meus parabéns, Laís. O conto é muito bom. Mostra uma pessoa corroída pela perda e pela dor em relação aos atos cometidos num passado sombrio, que não é de todo revelado, mas que não se torna tão importante para tornar verídica sua dor. Mexer nas memórias é realmente dolorido em muitas ocasiões. E quando a existência se torna insuportável (como foi no caso dela) os remédios, as drogas e o suícidio acabam se tornando caminhos fugitivos.
Eu escrevi um conto, ainda está no meu blog, que se chama "Delírios e Chaminés", que também retrata esse mundo de memórias e confusões e dores. Gostaria que vc lesse. De certa forma eles se parecem um pouco.

Continue escrevendo!
Bjos!

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